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Slash: Alucinações, sexo, dinheiro e armas de fogo no auge do vício

O jornal inglês The Guardian publicou, em sua edição de 14 de outubro de 2007, um trecho de “Slash: The Autobiography”, de Slash e Anthony Bozza, publicado pela Harper-Collins.

Este trecho se passa em 1989, logo após o fim da turnê do “Appettite For Destruction”, época em que o guitarrista do GUNS N´ ROSES e VELVET REVOLVER estava afundado em heroína e cocaína:

“Era 1989; uma vez que a última parte da tour para promover o ‘Apetite For Destruction’ tinha acabado, eu estava de volta a Los Angeles realmente sem ter o que fazer e desconfortável; pela primeira vez em dois anos eu não tinha um lugar pré-determinado para estar, sem emprego, nada pra fazer quando eu acordasse. Eu tinha estado fora por tanto tempo que nada me satisfazia e todas as coisas cotidianas da vida pareciam estranhas pra mim. Eu não tinha certeza de como ou quando eu deveria ir até o supermercado fazer compras depois de ter tocado em lugares grandes no Japão uma semana antes. Eu havia estado em turnê por tempo suficiente para esquecer que houve uma época em que eu mesmo comprava minha bebida e meus cigarros, e o que eu não conseguia largar era a excitação de tocar toda noite”.

“Izzy [Stradlin, guitarra-base do Guns N’Roses] me ligou e fomos até a casa de um amigo de um amigo a quem chamaremos de Bill. A gente tinha provado heroína na Austrália, então a fissura já tinha batido quando chegamos em casa. Além disso, depois de dois anos excursionando, subconscientemente, nós sentíamos que merecíamos isso. De qualquer modo, Bill curtia drogas e sempre tinha muito de todo tipo; ele também era muito generoso. Quando você começa a ficar famoso e tudo mais, algumas coisas típicas começam a acontecer: em Hollywood, se você está num bar, todo mundo quer te pagar uma bebida, você pode entrar em qualquer casa noturna; goste você ou não, você se torna uma figurinha da vida noturna. Quando isso começou a acontecer conosco, não havia nada menos interessante que eu imaginasse que pudesse fazer com meu tempo. Aquela cena de Hollywood era a mesma merda de sempre, e quanto mais reconhecido eu ficava, menos eu gostava disso. O monte de ‘amigos´ que queriam ‘curtir’ comigo tinha quadruplicado, então eu me tornei completamente insular; olhando agora pra tudo aquilo, faz todo sentido na época eu optar por seguir para uma sedutora zona de conforto com a heroína. Eu não queria ir a casas de strip-tease ou procurar gostosas ou exercitar, de qualquer outro modo, meu recém-descoberto status. Tudo que eu queria fazer era dar um tempo na casa do Bill e me chapar. Isso acabou virando uma longa e atormentadora obsessão pela heroína, que durou de 1989 até 1991”.

“Eu passei por uma interessante sucessão de namoradas nessa época, e um punhado delas eu via na minha casa, cada uma em noites diferentes. Em algum ponto durante esses meses meu empresário teve a brilhante idéia de que eu apresentasse um prêmio pra não sei quem no MTV Music Video Awards. Eu nem lembro pra quem nós demos o prêmio, mas minha co-apresentadora era Traci Lords, a estrela pornô, então nós nos encontramos na coxia e começamos a namorar imediatamente. Eu estava numa situação estranha; eu era levemente famoso, eu era infame, mas eu ainda estava preso numa mentalidade restrita e limitada em termos de qualidade de vida. Naquela época, eu podia ter 15 milhões de dólares no banco, mas não mudava o meu estilo de vida nem um pouco; eu não tinha um carro, eu estava feliz em ter meu apartamento de um quarto que parecia um quarto de hotel normal, e não precisava de mais nada – era aí que estava minha cabeça. Ao mesmo tempo, eu sabia ser um cavalheiro, que é exatamente o que Traci Lords procurava num encontro”.

“Mas Traci não queria saber de ser vista em público comigo; se fôssemos a qualquer lugar onde qualquer um pudesse estar prestando atenção, ela me fazia pagar um mico desgraçado fazendo eu entrar depois dela e encontrá-la lá dentro, como se fosse por acidente. Obviamente eu era reconhecido, então ela sempre insistia que entrássemos por alguma porta de serviço num beco escuro. Pelo que eu entendo, ela queria ficar anônima pois não queria ser tida por uma groupie vagabunda ou uma das garotas do mundo pornô com o qual sujeitos como eu saíam. Eu nunca fui um desses caras que julgavam as pessoas por esse tipo de coisa e nunca entendi os que eram assim; na verdade, a única razão pela qual eu sabia quem era ela foi tê-la visto num filme onde ela tava se curvando pra frente e segurando os próprios tornozelos e ela estava linda. Eu realmente valorizava isso, então eu achava que todo mundo valorizaria isso também. Eu não sacava qual era a dela”.

“Claro, uma vez que eu comecei a sair com ela, meu amigo West Arkeen trouxe uma cópia de ‘New Wave Hookers’ [famoso filme pornô de Lords] pra que a gente desse uma olhada. Foi muito divertido, mas meio que uma provocação porque eu e Traci ainda não tínhamos dormido juntos. Nossa relação estava deixando de valer a pena por causa da aporrinhação”.

“Traci tinha me ligado uma semana pra fazer planos e naquele dia West colou na minha casa com uma baita cara de Crack. A gente ficou acordado pelos dois dias seguintes e quando Traci chegou pra sair comigo, West e eu estávamos tão chapados que rastejávamos pelo chão procurando pedrinhas. Eu sabia que ela viria, mas eu não conseguia evitar: nós estávamos zoados; a única pessoa que ficaria numa boa com aquilo seria uma puta de rua viciada. Minha casa estava um chiqueiro em todos os aspectos e não ajudou muito que West estivesse lá como um pigmeu assentado: ele só tinha 1,60m e tinha um cabelo loiro liso que estava bem ensebado após dois dias fumando crack.
West sempre tinha esse risinho bobo na cara que foi se tornando mais e mais perturbador com o passar dos anos”.

“Nessa tarde em particular ele estava tão louco que deu em cima de Traci na cara dura!. Ele estava tão chapado que não pensou duas vezes antes de ir pruma estante, pegar o video de ‘New Wave Hookers’ e apontar pra capa, dizendo: ‘Essa aqui é você, né? Você é a Traci Lords!’, ele dizia rindo pra ela, que por sua vez, deu uma olhada no lugar. `Já volto,´ ela disse com aquela vozinha. `Eu esqueci uma coisa no meu carro´ ‘Claro, vai lá,’ eu disse. `Daí a gente sai´, eu estava doido, e não com muita noção de tempo, mas logo me dei conta que ela já tinha saído há muito tempo e não iria voltar”.

“Acabei por fazer o que qualquer um com dinheiro deveria fazer após morar de aluguel por um tempo: comprei uma casa do jeito que meu empresário financeiro me disse pra fazer. Eu nem tinha noção de como seria meu futuro ou de como tomar conta das minhas finanças; eu não tinha aspirações mentais. Não gastava muito com nada naquele ponto; dinheiro ainda era um conceito abstrato pra mim. Eu achei uma casa logo no fim de Laurel Canyon, que sempre tinha sido conhecida como a Walnut House. Eu estava bem fora de controle na época. Eu lembro de encontrar o cara da construtora pra falar sobre reformar meu banheiro e pensar que se eu batesse umas carreiras seria uma boa maneira de se quebrar o gelo. Ele e eu ficamos no banheiro e ele me conduziu através da porta que precisava ser feita. `Sim, sim, legal, cara,´ eu disse. Eu baixei a tampa do vaso e bati quatro taturanas de coca. `Quer uma?´ Ele parecia realmente desconfortável. `Não, não, obrigado. Estou de serviço´, ele disse. `OK, sem erro,´ eu disse. `Vou cheirar a sua então´. `Não é só isso, é que são oito horas da manhã´, ele disse sorrindo e desculpando-se”.

“Naquele instante eu virei todo clichê do pesadelo que aquele cara já tinha ouvido falar sobre astros do rock empacotado num só – ainda mais porque ele tinha sido contratado para transformar meu banheiro extra e sua baita hidro num viveiro de cobras que tomava um quarto do cômodo. Ele iria construir paredes de vidro do chão até o teto pra rodear a banheira, que era elevada, e por um conjunto de escadas de vidro pra que fosse possível ver minhas cobras, seja lá onde elas estivessem. Eu mal podia esperar pra encher aquilo e árvores e tudo mais que as cobras gostam. Na Walnut House eu mantive 90 cobras e répteis”.

“Não precisava ser nenhum vidente pra perceber que, se nós desejássemos voltar a ser uma banda de novo, Izzy e Duff [McKagan, baixista do grupo], Steven [Adler, baterista] e eu, precisaríamos escrever umas músicas e deixar o Axl [Rose, vocalista do grupo] interessado e de volta à ativa. A gente continuava ensaiando, e uma vez que tínhamos arrumado umas canções, fomos pra casa do Izzy pra compor qualquer coisa e ver onde ele estava com a cabeça. Não demorou muito pra eu saber. Eu estava no banheiro mijando quando eu notei a camada de 5 cm de poeira em seu chuveiro e banheira. Aquilo não havia sido usado por semanas – Izzy tava louco. O Axl apareceu naquele dia, e ainda assim começamos a trabalhar numa música chamada `Pretty Tied Up´. Eu lembro que o Izzy tinha pego um prato de bateria e uma baqueta pincel e fez uma cítara com isso. Não preciso nem dizer, Izzy estava bem louco. Mas a gente nem teve que chamar a atenção dele; ele entrou em pânico uma noite. Seja lá o que fosse, o Izzy ficou tão abalado que não queria nem falar no assunto. Ele apenas ligou pro pai dele, que veio de Indiana e o levou pra casa, e foi assim que o Izzy se limpou das drogas. Ele está limpo desde então”.

“O restante de nós continuou a trabalhar, e uma vez que tínhamos um pouco de material e estávamos nos comunicando com Axl de novo, ele nos contou que o Izzy queria escrever o álbum seguinte em Indiana. Eu não poderia imaginar por quê; ambos tinham saído de Indiana logo que puderam pra vir pra LA e nunca pareceram curtir muito a idéia de voltar. De qualquer modo, nossa situação era tão imprevisível que eu não iria mudar pruma roça de trigo sem uma garantia que faríamos algo de concreto. No fim das contas, nós concordamos em ir pra Chicago”.

“Eu e Doug Goldstein, nosso empresário, fomos dar uma olhada onde iríamos morar e ensaiar. Nós escolhemos o Cabaret Metro, o famoso rock club no lado norte da cidade; é um local de shows que abriga uma casa separada chamada de Smart Bar no porão, e tem um teatro no andar de cima. Nós alugamos um prédio de apartamentos de tijolo à vista alguns quilômetros da estrada em Clark Street, bem do lado do elevado do trem, pra morar”.

“Todos nos mudamos pra lá, com nossos técnicos, Adam Day e Tom Mayhew, nosso gerente de produção, e nosso novo segurança, Earl. Duff, Steven e os roadies se mudaram pro primeiro andar, e Axl, Izzy, Earl e eu pro andar de cima. Por mim tudo bem, porque eu ficava com o lugar só pra mim a maior parte do tempo – demorou mais de um mês pro Axl se juntar a nós, e o Izzy ficou lá menos de uma hora. No nosso imenso tempo de sobra, Duff e eu nos esforçávamos para ficarmos em forma. Eu tinha uma de minhas bicicletas BMX lá e costumava andar com ela entre o apartamento e o local de ensaio, pulando sobre tudo que eu conseguisse, andando pela calçada. Era um bom exercício. Alguns dias Duff e eu até íamos a academia, geralmente logo após nossas vodkas matinais. Íamos até um daqueles YMCAs públicos com o Earl pra puxar ferro. A gente ia de calça jeans, fazendo exercícios entre pausas pro cigarro – era muito revigorante”.

“Toda noite nós batíamos ponto no Smart Bar. Mas a gente não interagia com as pessoas de lá, ainda que tivéssemos uma dúzia de mulheres. Parecia uma galeria de tiro aquele lugar, e eventualmente eu me fixei com uma garota. O nome dela era Megan; ela tinha 19 anos e morava com a mãe e um irmão mais novo em um subúrbio perto dali. Ela tinha uma aparência realmente exótica, seios grandes, cheinha, uma garota doce”.

“Eu realmente tentei ficar concentrado no trabalho uma vez que Axl havia chego, mas dois incidentes puseram fim à minha estadia na ‘cidade-vento’. O primeiro foi a noite em que eu cheguei em casa depois de encher a cara e vi um buffet de comida italiana na calçada em frente ao nosso apartamento. Eu dei uma bela olhada naquela zona, pelo que eu lembro, eu tinha insistido em passar a noite toda deitado no teto do carro enquanto a gente era guiado de bar em bar. Nosso restaurante italiano favorito era logo na esquina e aparentemente, Axl tinha jogado todo o jantar da banda sobre algumas pessoas que descobriram onde morávamos e estavam gozando com ele da rua. Daí ele quebrou a cozinha inteira e todos os itens de vidro do apartamento. E, como descobriríamos alguns dias depois, durante esse chilique, Izzy chegou, dirigindo de Indiana. Ele deu uma olhada naquilo que tava rolando ainda da rua, deu meia-volta com o carro e foi embora imediatamente sem nem entrar no prédio”.

“Deveríamos ter percebido que Axl estava infeliz e fingindo depois desse primeiro incidente, mas daí a gente chegou a um ponto onde simplesmente o deixávamos nas suas viagens e nos adaptávamos. Quem sabe se a gente tivesse escutado o que ele queria que a gente fizesse e concordasse um pouco mais ele não tivesse pirado tanto. Mas mesmo assim, quem é que sabia o que deixava ele infeliz? Ele aparecia com uma postura meio amarga que parecia vir de uma depressão. Mas pra ser honesto, eu estava mais preocupado com Steven do que com o Axl então; ele estava cheirando muito e o desempenho dele estava ficando irregular. Eu não me liguei de cara; ele escondia a farinha dele na geladeira”.

“A gente até dava um tempo e cheirava um pouco, mas eu não conseguia descobrir porque o Steven estava sempre tão lesado. Dava uma tremedeira no olho dele e ele dizia, ‘Hey, cara, na prateleira da manteiga’, e apontava pra geladeira. ‘Sim, OK, Steve. Claro,’ eu dizia. Eu ia até a geladeira, fazia um coquetel qualquer e não voltava com mais nada. Eu acho que ele realmente queria que eu olhasse na prateleira da manteiga. Ele estava fodido assim e eu não levei isso a sério. ‘Você viu?’ ele perguntava, rindo meio louco. Ele só ficava apontando pra geladeira e dizendo, ‘prateleira da manteiga’. ‘Claro, cara, eu vi,’ eu dizia. ‘é realmente uma bela geladeira essa sua. Sua prateleira de manteiga é do caralho, cara'”.

“‘Prateleira de manteiga?!?'”

“‘E aí, Steven, o que você tá dizendo?’ Tom Mayhew descobriu o que era, eventualmente. Steven tinha uma baita barra de coca enfiada naquela prateleira de manteiga”.

“A gota d’água com o Axl envolveu umas minas que a gente trouxe pra casa uma noite. A Megan tinha saído e eu estava em casa, na cama. Tarde da noite, eu ouvi um fuzuê; barulho de gente chegando, passando pela minha porta e indo pro quarto de Axl. Até ai normal, apesar que Axl passava a maioria do tempo lá dentro sozinho, constantemente ao fone. Essa noite foi sem dúvida uma ocasião rara. Meu quarto ficava na frente do apartamento, separado do de Axl pela nossa sala de estar e um corredor comprido feito uma ferrovia. Daí eu fui lá ver o que estava rolando; eu achei o Earl, Tom Mayhew, Steve e Axl com duas sorridentes moças do meio-oeste que eles tinham trazido. Daí nós todos ficamos por lá, e lá pelas tantas, sugeriu-se que elas transassem conosco. Elas toparam chupar todo mundo, mas não queriam ‘dar’ pra gente; por alguma razão, isso emputeceu o Axl. As moças explicaram o motivo racionalmente, pelo menos pra mim, mas Axl insistia em discordar. Esse debate continuou por um tempo e estava bem sossegado, mas daí, do nada, Axl explodiu. Ele as expulsou com uma raiva que foi chocante. O jeito em que tudo rolou foi completamente desnecessário. O melhor de tudo é que o pai de uma das moçoilas era um fodidão da polícia de Chicago, foi isso que me disseram. Mais tarde naquela manhã eu empacotei minhas coisas e peguei um avião pra Los Angeles. Alguns dias depois, eu fiz a Megan também se mudar pra lá”.

“Minha retaliação quando eu me frustro criativamente é ser autodestrutivo com as drogas. É minha desculpa para seguir esse caminho. É um fenômeno comum pros nóias. Então pouco depois de chegar a Los Angeles, considerando o estado das coisas com a banda, logo que a oportunidade surgiu, eu estava louco pra tirar proveito. Megan e eu tínhamos nos instalado; estávamos felizes em nossa nova casa. Ela se revelou uma bela dona de casa, mantinha o lugar, cozinhava, era muito caseira de uma maneira natural. Ela ia pra cama cedo e acordava pra ir pra academia e depois fazer faxina e jantar. Ela ficava em casa e ia pra cama às 10 ou 11 da noite e eu ficava acordado a noite toda, no andar de baixo, na sala de estar, injetando a cada par de horas no banheiro. Algumas noites eu compunha músicas no sofá, noutras eu ficava olhando pras cobras. Antes que notasse, já era de manhã e a Megan tinha acordado e a gente se divertia até eu ficar cansado. Ela nunca perguntava nada e a gente se deu bem assim por um tempo, de maneira muito feliz. Tínhamos apelidos pra tudo. Tudo pra ela era ‘lindinho’ ou ‘uma graça’, e eu geralmente era ‘docinho'”.

“Logo eu comecei a misturar cocaína com heroína além da conta e realmente curtia aquele tipo único de paranóia alucinatória que vem com a mistura. Ninguém tinha me ensinado a misturar as duas coisas. Eu achava que era igual receita de bolo. Coca e heroína são duas coisas boas que ficariam ainda melhor juntas. O pega da coca me chutava pra cima e dai a heroína fazia efeito e a viagem dava uma bela volta; as duas ficavam se alternando na minha mente e eu sempre acabava injetando toda a heroína antes de mandar a coca pra dentro, daí eu ficava ligado a ponto de ter um ataque do coração. Ao fim dessas noites, eu acabava ficando também com uma sensação peculiar de que alguém estava me observando, então comecei a andar pela casa armado até os dentes, o que me parecia sensato”.

“Comprei um bando de berros: uma escopeta, um .38 especial, uma Magnum .44, e alguns revólveres. Eu colocava meu .38 atrás das calças, e depois que a Megan ia dormir, eu dava um rolê pela casa pensando nas coisas enquanto observava as figuras de minha alucinação aparecerem nos cantos da minha visão. Eu via elas pularem e rolarem pelos puxadores da cortina e correrem pelo canto dos meus olhos, mas toda vez que eu tentava virar a cabeça pra vê-los, eles desapareciam. Foi por aí que eu parei de falar com todo mundo que conhecia e comecei a desenhar feito um louco”.

“Ao longo de minha vida, meus desenhos sempre refletiram no que eu estava concentrado na época. Durante esse período, eu não desenhava nada senão dinossauros e uns logotipos variados. Eu devia ter desenhado os pequenos demônios que eu nunca conseguia ver ou registrar em fitas de vídeo – acredite, eu tentei isso também. Tão breve eu comecei a usar heroína e cocaína juntas de maneira regular, aqueles caras estavam por todo canto. Eles eram figuras pequenas, gosmentas e transparentes que eu via de longe até que eles subissem em minha jaqueta quando eu ficava chapado. Eu queria conhecê-los de algum modo; eu me deitava no chão, esperando meu coração desacelerar, assistia ao pequeno Cirque du Soleil que aqueles sujeitos montavam pelo quarto. Eu muitas vezes pensava em acordar Megan pra que ela pudesse vê-los também. Eu até tirei fotos deles no espelho quando os flagrei pendurados no meu ombro e no meu cabelo. Eu comecei a conversar sobre eles e vê-los tão claramente que apavorei até meu traficante. Nas raras ocasiões que eu saía de casa pra comprar bagulho, eu geralmente me picava na casa dele e começava a ver aqueles homenzinhos subindo em meu braço. ‘Hey, você tá vendo isso?’ eu perguntava, esticando meu braço. ‘Você tá vendo esse homenzinho, né? Ele está bem aqui’. Meu traficante só ficava dando um grau em mim. E era um sujeito que estava bem acostumado ao peculiar comportamento dos nóias. ‘Melhor você ir, cara,’ ele dizia. ‘Você tá muito louco. Você deveria ir pra casa.’ Pelo jeito eu prejudicava os negócios dele”.

“Uma noite eu estava patrulhando a casa com minha escopeta e desci as escadas do quarto até a sala de estar. Daí eu subi as escadas até o quarto, dando no loft, onde Megan estava dormindo. Quando cheguei lá, a arma disparou e a bala fez um buraco do teto do outro lado do loft. Megan nem acordou”.

“David estava mostrando serviço, e muito, e quis saber das vias do abuso de substâncias químicas. Ele me perguntou o que eu estava tomando em termos de bagulho e pelo que eu estava passando emocionalmente, psicologicamente, fisicamente e com a banda. Eu enrolei um pouco, mas na hora que eu comecei a falar sobre meus amigos invisíveis, David me interrompeu. A conversa como um todo foi muito íntima para ter com alguém que ele não tinha visto desde os oito anos de idade, mas ele já tinha ouvido o suficiente. ‘Me escute,’ ele disse. ‘Você não tá numa boa. Se você está vendo coisas, o que você está fazendo a si próprio não é nem um pouco bom. Você está num ponto espiritual muito baixo quando isso começa a acontecer.’ Ele parou por um momento. ‘Você está se expondo às mais obscuras fronteiras do seu subconsciente. Você está aberto a todos os tipos de energia negativa’. Eu estava tão alienado que não concordei. Eu achava que minhas alucinações eram apenas um tipo de entretenimento. ‘OK, beleza.’ Eu disse. ‘Sim, deve ser ruim mesmo. Valeu o toque'”.

“Doug achou que ele podia armar uma leve intervenção com o Steven levando-o de férias pra um resort de golfe no Arizona. Eu era um bicho mais complicado – dizia que a desintoxicação não ia dar muito certo, e nem estava sendo desejada. Na verdade, ninguém poderia dizer merda nenhuma pra mim naquela época; eles tinham que confiar que eu ia dar um jeito nisso tudo sozinho. E eu queria isso de todo coração; eu pensava nisso ao longo de inúmeras noites varadas na Walnut House”.

“Arrumei um médico pra me receitar Buprinex, que é um bloqueador das substâncias alcalóides encontradas no ópio. Ele me arrumava garrafas e seringas disso. Era um tratamento muito caro, mas esse sujeito era meio Dr. Feelgood [Nota do editor: nome dado a médicos que prescrevem drogas “legais”], não era lá um cara que clinicava de maneira propriamente dita, por assim dizer. Levei tudo aquilo comigo na noite que eu, de vontade própria decidi me juntar ao Doug e ao Steven no Arizona. Fazia completo sentido naquela época: o sol do Arizona era um excelente lugar para eu começar a sair do vício. Eu disse a Megan que tinha umas paradas da banda pra resolver e que eu voltaria em quatro dias. Eu marquei meu vôo, chamei uma limusine, e liguei prum traficante que eu sabia que ficava no caminho pro aeroporto. Eu tinha planejado tudo. Peguei cocaína e heroína suficientes, todo o Buprinex que ele tinha e fiz as malas para um longo e doce fim de semana num resort de golfe”.

“Eu não tinha ligado pro Doug ou pro Steven para dizer a eles que eu estava indo, então quando eu aterrisei naquela noite, eu estava sozinho. Não tinha muita coisa rolando na cidade, mas eu não tava nem aí. ‘Hey, esse lugar fica muito longe?’ eu perguntei ao motorista da limusine. ‘Cerca de 45 minutos, senhor’, ele disse. ‘OK. Escuta, você pode parar em algum lugar pra comprar uns talheres pra mim?’ perguntei. ‘Tô com um rango aqui atrás e tô louco de fome’. O motorista dirigiu por cerca de 20 minutos e parou num Denny’s [cadeia de lojas de conveniência norte-americana]. Ele saiu e me entregou uma faca e um garfo, enrolados num guardanapo. ‘Ótimo’, eu pensei. ‘Hey’, eu disse: ‘Escuta, tem algum outro lugar que a gente possa parar? Eu preciso de um conjunto completo de talheres’. Depois de mais 15 minutos nós paramos de novo e dessa vez eu arrumei a colher. Eu subi a divisória entre eu e o motorista, puxei meu bagulho pra fora e cozinhei meu pó. Matei minha fissura e relaxei enquanto dirigíamos pro hotel. O cascalho da paisagem do Arizona de repente parecia muito mais convidativo, e o vidro com insufilme tornou-o ainda mais atraente”.

“Quando chegamos ao resort, o Venetian, subi sozinho pro meu quarto. Não era o tipo de lugar com o qual eu estava acostumado, porque não parecia um hotel; era uma coleção de bangalôs ao longo de um bem cuidado campo de golfe. Meu quarto era ótimo, com belas cortinas brancas ao redor da cama, uma lareira pequena, e um banheiro com uma ducha rodeada por blindex – era como um spa. Era tão relaxante que eu não conseguia pensar em nenhuma terapia melhor do que injetar heroína e cocaína a noite toda pra destilar minha alma. Logo me esqueci que a porcaria que eu levei devia durar quatro dias – eu estava agindo como se tivesse que comemorar algo. Dentro de horas, eu estaria sem heroína. É um problema comum entre os viciados: quando você está chapado, está num estado agradável, tudo é bom e doce, e é daí que você faz seus planos; é aí que você pensa em quanto bagulho você precisa. Daí você começa a usar seu bagulho e tudo muda”.

“Continuei injetando coca e passei aquela noite me picando e estava muito feliz comigo mesmo apenas fazendo isso por algumas horas. E daí as coisas ficaram loucas. Eu comecei a lutar boxe com monstros que eu via do outro lado das cortinas que rodeavam a cama em tamanho king-size. Batia e me esquivava, como se estivesse numa academia me exercitando. Esse shadow-boxing rolou a noite toda até que o sol nasceu, afundando toda e qualquer sombra no quarto e acabando com minha atividade. Quando eu saí do transe, eu me dei conta que eu provavelmente deveria sair à procura de Steven e Doug”.

“Primeiro, decidi tomar uma ducha pra melhorar um pouco. Mas antes disso, eu decidi tomar uma última dose de cocaína. Eu me senti ótimo quando entrei naquele grande, luxuoso chuveiro parecido com uma chuva. E enquanto eu estava lá sob a boa água morna, as alucinações da coca me bateram mais forte do que na noite anterior. A luz do sol estava entrando pela abóbada, mas eu via longas sombras subirem pelos cantos do quarto. Elas subiam pelo chão em direção a mim, no vidro do box do chuveiro, e tomaram a forma dos monstros das sombras com os quais eu tinha feito shadow-boxing antes. Eles estavam bem na minha frente, preenchendo a porta de vídro, e eu não ia deixar eles me pegarem, então eu mandei um murro com toda minha força neles, despedaçando todo o vidro pelo chão. Eu fiquei lá com a mão cortada, debaixo da água, paralisado, paranóico, vasculhando o banheiro com os olhos atrás de outros inimigos”.

“Foi aí que meus pequenos amigos apareceram. Prá mim eles sempre se pareceram com a criatura do filme ‘O Predador’, mas numa fração do tamanho e de cor azul-cinza transparente; eles eram fortes com as mesmas cabeças pontudas e dreadlocks de borracha. Eles sempre tinham sido uma distração despreocupante e bem-vinda, mas essa alucinação foi macabra. Eu podia vê-los se aglomerando na porta; havia um exército deles, segurando pequenas metralhadoras e armas que pareciam arpões”.

“Eu estava aterrorizado; corri pelo chão cheio de cacos de vidro e bati a porta corrediça de vidro do banheiro. O sangue começou a formar uma piscina em minha volta, saindo dos meus pés, mas eu não sentia nada; eu assisti horrorizado aos Predadores espremerem seus braços e pernas entre a porta e o batente e começarem a empurrar a porta pro lado. Eu coloquei todo meu peso contra ela em um esforço pra mantê-la fechada, mas era inútil; eles estavam ganhando e eu estava perdendo equilíbro sobre todo aquele vidro quebrado”.

“Decidi correr. Me joguei pela porta de vidro, me cortando ainda mais e espalhando cacos pelo quarto todo. Quando saí correndo do bangalô, a luz forte do sol, o verde chocante da grama e as cores do céu eram impressionantes; tudo era pulsante e vívido. Tudo em meu quarto parecia tão real que eu não estava preparado, na minha condição, para ser tão abruptamente transportado das cortinas abaixadas pro meio da brilhante luz do dia”.

“Corri pelo lugar completamente pelado e sangrando, pra longe do exército de Predadores que eu via atrás de mim toda vez que eu olhava. Eu precisava de um abrigo da castigante luz do sol, então eu entrei pela porta aberta de um outro bangalô. Me escondi atrás da porta, e depois atrás de uma cadeira, enquanto os Predadores começavam a encher o quarto. Tinha uma camareira lá, fazendo a cama, e ela começou a gritar quando me viu. Ela gritou ainda mais quando eu tentei usá-la como escudo humano pra me proteger dos pequenos caçadores no meu rastro”.

“Saí correndo de novo, no gás, pelo meio do resort, com um exército transparente nos meus calcanhares; as cores e o cenário só acrescentavam mais loucura à minha demência; eu consegui chegar à parte de trás da sede social do clube e entrei pela porta dos fundos pra dentro da cozinha; todos os cozinheiros e o serviço estavam me deixando tonto, então eu corri pra fora de lá, direto pro saguão. Havia hóspedes e funcionários por todo canto e eu lembro de ter agarrado um executivo bem vestido que estava por lá, de pé, com sua bagagem, usando-o como escudo humano de novo. Ele parecia tão impávido que eu achei que ele poderia barrar os Predadores, mas eu estava errado. Eles me alcançaram nessa altura e começaram a subir por minhas pernas, carregando suas pequenas armas. O executivo não queria nem saber de mim; ele se soltou e eu recuei até um armário de material de limpeza em algum lugar perto da cozinha. Enquanto uma platéia começava a se formar, eu saí correndo de lá de novo, eventualmente achando escuridão e abrigo numa moita no caminho de pedras, onde eu me escondi atrás de um cortador de grama, até que, finalmente, as alucinações começaram a diminuir”.

“Eu tinha causado um baita dum fuzuê nessa altura do campeonato; os policiais apareceram, e junto com um monte de curiosos, me abordaram em meu esconderijo. Eu não estava mais vendo os Predadores, mas quando eu dei meu relato aos policiais, ele envolvia uma recriação detalhada de como eles me caçaram por todo o resort tentando me matar. Eu ainda estava louco o suficiente pra contar a história sem um pingo de consciência. Tudo ao redor de mim ainda parecia muito bizarro; mesmo quando Steven se acotovelou pelo meio dos curiosos e me deu uma calça de moletom”

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